quarta-feira, agosto 14


Aproximando-me deixo cair a bicicleta de cores e passeatas. A nossa relação é amigável e deixá-la cair não tem maldade. Somos amigos de recente data mas aqui encontrámos aquela praia. 
De uma parte junto ao rio em Alhos Vedros destaca-se um lugar com barulho próprio como qualquer outro que tem o seu. Um lugar lindo nuns momentos e noutros, como dias em que o uso, tão feio. Tem memória de pequenas coisas más e sarcásticas da azáfama obrigatória que provém de felizes recordações. Num dia encontrei este lugar regado pela morte natural de qualquer armadilha feita pelo homem e lembro-me de gravar imagens de luz com o que estava espalhado pelo chão. Tanto animal do mar morto. Noutro dia tinha ali um barco plantado onde me regalava com o sol, contemplando a brisa com cheiro a ervas do campo, rio e mar, torrão de um inverno nos seus últimos dias e as mesclas de um lugar tão pouco visitado. Um lugar para diferentes imagens. 
Nestas horas visito-o pelo barulho da sua água correndo contra peixes que respiram bolhas oxigenadas pela corrente. Aberto para uma paisagem invejável, sento-me criando panóplias mentais onde predominam desenhos de letras em tom de rabisco, nas folhas que seguro e onde crio histórias de fantasiar. 
Sentado respirando pela memória com o que brinco e sonho, entro num sítio que na verdade não existe a não ser pela memória fotográfica que peguei nas esquinas das cidades ou nas cadeiras da vida e que comigo transporto todos os dias. Um livro talvez. 
Não foi fácil encontrarmo-nos. Foi mais fácil marcar novo encontro porque tinha de o descobrir ou simplesmente apreciar e com ele criar algo. Entrar naquela paisagem num sábado de manha mais parecia o entrar num lugar descoberto a punho e tanto custo quando na verdade ainda não tínhamos estado só os dois e este, mais perto que qualquer outra coisa e na verdade já me tem feito alguma companhia. Sentia-me um forasteiro que mastiga vontades na fumarada do quotidiano, que brinca com seus dedos parados, apercebendo-me do inútil que são as dormidas para mudar a pele que visto. 
Depois de curtos passinhos e já instalado com a água correndo-me pelas pernas, misturo-me nas tais fantasias nostálgicas. 

Uma aldeia de tradições, brancos de cal, rugas com contos, e um paladar de pequenos professores artesãos, de prosa inatingível, saltavam-me à vista sem que fossem parte de qualquer realidade senão daquela que imagino. Vou subindo e quase chego ao mirante onde a luz e os ruídos daquele lugar me fascinam. Irei conseguir. É uma rua grande em direcção à tal igreja que se situa sempre no centro das vilas. Ladeada de olhos que cravam pensamentos medonhos mas também, de brincadeiras que ocupam o tempo que esbanja depois da labora das terras. Transporto alguém comigo, Chico o rapaz daquela aldeia desertificada. Alguém que me carrega as preocupações e os empréstimos de tempo, assim estou com a imaginação que se funde com as estalactites que duram no final da sua época e liberto-me para os meus vocábulos de algibeira. 

- Nesta vila tudo se esquece depressa menos o que nela se educa desde tenra idade e que perdura até à morte. Conta Chico. 

A idade está marcada e a pasmaceira do centro sentencia a cultura que encontro nos meios rurais. 
Os bancos de descanso, casas, jardins, a arquitectura social é a tradicional na terra do faz-se nada ou do ninguém aparece. A visita estranha é escrutinada como se viesse de outro lugar bem longe e desconhecido e isso faz parte da tarde em que me apresento na chegada. Não sei como será mais logo em tectos que ali moram e que me serão emprestados. Onde estarei coberto pelo cheiro duma lareira onde cabo de pé e numa mesa de sala lendo gestos e pensamentos que necessitarei de descodificar ou simplesmente respeitar. Anseio por chegar. 
Dona Amélia recebe-me como se estivesse vendada. Aquele ouvido afinado contava os meus passos bem longe e ouvia insectos zunindo nos jardins que ladeiam a casa. Sempre apurada e pronta para qualquer assunto de liderança e lida da casa. Contínua gritando com os fascinas ao mesmo tempo que abre os braços para me receber. Não nos conhecemos, nunca nos vimos antes, e na hora da minha reserva os telegramas trocados davam a certeza que sou eu quem devia chegar aquela hora. Aquele receber é tradição, situa-se entre as entranhas das paredes de pedra da vila e o ar que toda esta respira. 

- Pelo jeito, Sr. Cláudio? Boa tarde. O almoço ferve e prazer em recebe-lo nesta casa.

Aprumada pela moda de séculos sem pretos melancólicos ou de obrigação confirma-se. Estou cumprimentado e Chico leva-me aos meus aposentos onde sou banhado com cheiros de campo e fruta de época…
A mesa está posta. Aqui não se esquece os naperões e o cozido lá das gentes que são tão iguais aos que só passam de visita. O melhor olá depois desta viajem de malabarismo racional e imaginário está lá. 

Depois de me sentar e regalar o estômago irei continuar. 
A vista que banha este rio onde me sentei, contínua a fazer-me viajar e é mesmo real. O sábado de manha contínua e nesta viagem estou pronto para o almoço depois de cumprimentos feitos na casa onde D. Amélia me recebe. 

A história contínua nos meus cadernos. Uma impressão a partir do livro “aparição” de Vergílio Ferreira. 


1 Your comment :

Diogo Correia disse...


Ei Carlitos!!!

Li a o teu texto. Gostei da maneira simples como descreves os ambientes e as paisagens.
Houve ali uma parte que me revi mesmo no tédio Alhos Vederense, próprio dos meios rurais como tu o dizes. ehehehe

Grande Abraço companheiro
Diogo ;-)))